Em 1803, o sapateiro de Manuel Maria Barbosa du Bocage era Francisco Lourenço Gomes, estabelecido na calçada do Sacramento, em Lisboa. Francisco Lourenço era, n'aquelle tempo, rapaz de dezoito annos; mas, por sua muita esperteza e actividade, merecera que o pae lhe confiasse a gerencia da loja, grandemente afreguezada. Os poetas notaveis do tempo calçavam todos de casa de Francisco Lourenço; um só, porém, o maioral de todos, o repentista Bocage, calçava gratuitamente. Os coevos do poeta recordam-se de o terem visto quasi sempre mal entrajado de casacas, pantalonas e chapéos: mas, no tocante a botas, dizem todos que o vate Elmano primava em aceio, e raro dia saía á rua com ellas sem muito lustro de fina graxa. Este accidente da vida de Bocage, omittido nas biographias do immortal improvisador, escriptas por Castilho e Rebello da Silva, tive eu a fortuna de apanha-lo casualmente. Assim, pois, se explica a distincção das botas de Manuel Maria entre as dos seus collegas e rivaes do botequim Nicola: Francisco Lourenço, o sapateiro dos casquilhos d'aquelle tempo, era amante de versos. Principiára saboreando as trovas chôchas de José Daniel; e ditosa correra a vida pedestre ao infausto poetrasto, em quanto a admiração do sapateiro lhe foi prodiga de botas; quando, porém, o moço ouviu Bocage improvisar na festividade de Corpus-Christi, fatal hora badalou para o auctor do Almocreve das Pêtas, que nunca mais encontrou graça no seu Mecenas de bezerro e sola
Em 1803, o sapateiro de Manuel Maria Barbosa du Bocage era Francisco Lourenço Gomes, estabelecido na calçada do Sacramento, em Lisboa. Francisco Lourenço era, n'aquelle tempo, rapaz de dezoito annos; mas, por sua muita esperteza e actividade, merecera que o pae lhe confiasse a gerencia da loja, grandemente afreguezada. Os poetas notaveis do tempo calçavam todos de casa de Francisco Lourenço; um só, porém, o maioral de todos, o repentista Bocage, calçava gratuitamente. Os coevos do poeta recordam-se de o terem visto quasi sempre mal entrajado de casacas, pantalonas e chapéos: mas, no tocante a botas, dizem todos que o vate Elmano primava em aceio, e raro dia saía á rua com ellas sem muito lustro de fina graxa. Este accidente da vida de Bocage, omittido nas biographias do immortal improvisador, escriptas por Castilho e Rebello da Silva, tive eu a fortuna de apanha-lo casualmente. Assim, pois, se explica a distincção das botas de Manuel Maria entre as dos seus collegas e rivaes do botequim Nicola: Francisco Lourenço, o sapateiro dos casquilhos d'aquelle tempo, era amante de versos. Principiára saboreando as trovas chôchas de José Daniel; e ditosa correra a vida pedestre ao infausto poetrasto, em quanto a admiração do sapateiro lhe foi prodiga de botas; quando, porém, o moço ouviu Bocage improvisar na festividade de Corpus-Christi, fatal hora badalou para o auctor do Almocreve das Pêtas, que nunca mais encontrou graça no seu Mecenas de bezerro e sola