O Crime Do Padre Amaro: Scenas Da Vida Devota

Nonfiction, Religion & Spirituality, New Age, History, Fiction & Literature
Cover of the book O Crime Do Padre Amaro: Scenas Da Vida Devota by José Maria Eça de Queirós, Library of Alexandria
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Author: José Maria Eça de Queirós ISBN: 9781465565525
Publisher: Library of Alexandria Publication: July 29, 2009
Imprint: Library of Alexandria Language: Portuguese
Author: José Maria Eça de Queirós
ISBN: 9781465565525
Publisher: Library of Alexandria
Publication: July 29, 2009
Imprint: Library of Alexandria
Language: Portuguese
Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das selvas, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na primeira pagina branca: Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,—Marqueza d'Alegros. Possuia tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma côr ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge. Amaro completára então seis annos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adopção tacita; e começou, com grandes escrupulos, a vigiar a sua educação. A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do Céo e nas preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o chic fallando com igual fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de então dissera d'ellas:—Pensam todos os dias na toilette com que hão de entrar no paraiso. No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e dôces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão. A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era estar aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O capellão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.a D. Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francez e de geographia. Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido, torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras—vagamente assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas. Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As criadas de resto feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e elle rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás vezes, quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os seus modos languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tornou-se enredador, muito mentiroso. Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, collocava os santos em plena luz em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Martyres. No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada, trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia em que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca. N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joanna, entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de realisar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze annos. As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.a D. Barbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um homem obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o aceitára para sahir da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.a Gonçalves. O marido esse adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de joias e chamava-lhe a sua duqueza. Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera tepidamente envolvido em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle; passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em que passava debaixo das janellas, puxando os punhos, o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle comia ao jantar. Amaro emmagrecia e todas as noites chorava. Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava: —Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo quinze annos é para o seminario. Não tenho obrigação de carregar comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios! E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento. Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava ser padre. Desde que sahira das rezas perpetuas de Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que se falla baixo com as mulheres,—vivendo entre ellas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,—e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um annel de rubi no dedo minimo; monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de madeira. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia, viajára, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bella voz: Mulatinha da Bahia, Nascida no Capujá... Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou ás portas dos cafés, leu os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a reparar muito nas mulheres—e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escóla, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janellinha n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo negro da noite fórmas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas viellas, de saias engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo: —Então tu não estudas, mariola? E d'ahi a pouco, sobre o Tito-Livio, cabeceando de somno, sentindo-se desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o diccionario. Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia casar. Já as convivencias da escóla tinham introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello. Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silencio regulamentado, o toque das sinetas—deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou. Começaram a tratal-o por tu, a admittil-o, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás conversas em que se contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam com saudade das existencias livres que tinham deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados; os que vinham das pequenas villas lamentavam as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes—o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro. Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma diligencia costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrellas! E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d'algum missionario da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades dos jantares de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões quentes que chiam no prato! os sarrabulhos cheirosos! Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas! Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando como uma ovelha indolente na regra do seminario. Decorava com regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes—chegou a ter boas notas. Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com beatitude e maceravam os joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo, empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de Louvores a Maria; e cumpriam com delicia as regras mais miudas—até subir só um degrau de cada vez, como recommenda S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só lhe offerecia as humilhações d'uma prisão, com os tedios d'uma escóla. Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas que se accumulam no frou-frou das sêdas sobre o tapete do altar-mór, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o tlim-tlim d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres. Amaro não desejava nada: —Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente. No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario era o «tempo das galés», sahia muito perturbado d'aquellas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa, o desejo da Mulher. Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada sobre a esphera, com o olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca... Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama d'agua benta; mas não se atrevia a revelar estes delirios, no confessionario, ao domingo. Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado, comparal-o á serpente e, com palavras unctuosas e gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa mellíflua dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião... —E como disse o nosso padre S. Jeronymo,—e assoava-se estrondosamente—Caminho de iniquidades, iniquitas via! Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era esse, pois, que através de toda a theologia ora era collocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extatica, dando-lhe por acclamação o profundo reino dos céos,—ora vai fugindo diante d'ella como do Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam, desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfallecia no desejo de os quebrar. E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia: luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios molles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros—quantos encantos do peccado! Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silencio da alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos in-folios vinha-lhe um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto: rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do pateo, as comidas monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal, fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa. Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario, esta carta do snr. padre Liset: «Meu querido filho e novo collega.—Agora que está ordenado, entendo em minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios, pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marqueza—para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna—está inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabelecimento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n.º 53. Se toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu querido filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão, na Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade n'este nosso santo ministerio quando sabemos comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os refrigerios que dá—o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo collega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as suas virtudes, supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo.» Liset. «P. S.—O appellido do marido de sua irmã é Trigoso.» Liset. Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve alli desde outubro até ao fim das neves. Feirão é uma parochia pobre de pastores e n'aquella época quasi deshabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram nos districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas congruas. Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão; ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira. Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.º 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro. -Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança! Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão. —Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça... Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marqueza d'Alegros, a snr.a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e um e duas vezes ministro do reino. E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da snr.a condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta um coupé esperava. —A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado á hombreira do pateo, de cigarro na boca. N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos claros. —A senhora condessa já me não conhece..., disse Amaro com o chapéo na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro. —O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle é! Ora não ha! Está um homem! Quem diria! Amaro sorria-se. —Eu podia lá esperar! continuou ella admirada. E está agora em Lisboa? Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da parochia... —De maneira que vim requerer, senhora condessa. Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara, e Amaro sentia vir d'ella um perfume de pó d'arroz e uma frescura de cambraias. —Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha por cá.—E com o dedo sobre o canto da boca:—Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor é d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa.—E rindo com os seus largos dentes frescos:—Parece que o estou a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa! —Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro. —Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem. Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, n'um aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes d'ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias. Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona susurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia crochet, com a luneta encavallada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama. Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e immovel: a todos os cantos se apregoava monotonamente agua fresca! Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam; em redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas. Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido ha de fallar! E via-se já parocho n'uma bonita villa, n'uma casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas. Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminario lhe causava a continencia, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle gostava de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente. No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa. —Não está, disse-lhe um criado da cavallariça. Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado á parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu guardasol pendente do dedo minimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta, o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho n'uma larga sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da sala tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou: —Não sei se incommódo... Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde. —Sou Amaro... —Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher fallou-me. Tem a bondade... E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças brancas muito curtas: —É a pessoa de quem lhe fallei.—Voltou-se para Amaro:—É o senhor ministro. Amaro curvou-se, servilmente. —O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu... —Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado, com o guardasol na mão. —Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,—já não ha d'isso!—fel-o padre. Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o temos parocho... Onde, senhor padre Amaro? —Feirão, excellentissimo senhor. —Feirão!?... disse o ministro estranhando o nome. —Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita. —Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem distracções, com um clima horrivel... —Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor, arriscou Amaro timidamente. —Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.—E mascava o seu charuto. —É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e activos devem estar nas parochias difficeis, nas cidades... É claro! Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um velho, um gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé. —É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessario o estimulo... —Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos governos. O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d'objecção. —Não acha? perguntou-lhe o conde. —Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos na cidade são-nos d'um grande serviço nas crises eleitoraes. D'um grande serviço! —Pois sim. Mas... —Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar. Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada mais. O conde acudiu: —Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitoraes. —Perdão... queria interromper o outro. O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade d'um vasto entendimento: —A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio... —Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelliculas mascadas de charuto. —Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos imbroglios... Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é d'um christão. —Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas... —Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e desacredita a politica. —Mas são ou não as maiorias um principio sagrado? gritava rubro o das suiças, accentuando o adjectivo. —São um principio respeitavel. —Upa! upa, excellentissimo senhor! upa! O padre Amaro escutava, immovel. —Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou:—Entre. É o senhor padre Amaro, Joanna! Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de casimira clara. Nos vãos das janellas, entre as cortinas de pregas largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com contracções aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os joelhos aberto
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Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das selvas, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na primeira pagina branca: Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,—Marqueza d'Alegros. Possuia tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma côr ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge. Amaro completára então seis annos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adopção tacita; e começou, com grandes escrupulos, a vigiar a sua educação. A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do Céo e nas preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o chic fallando com igual fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de então dissera d'ellas:—Pensam todos os dias na toilette com que hão de entrar no paraiso. No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e dôces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão. A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era estar aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O capellão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.a D. Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francez e de geographia. Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido, torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras—vagamente assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas. Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As criadas de resto feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e elle rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás vezes, quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os seus modos languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tornou-se enredador, muito mentiroso. Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, collocava os santos em plena luz em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Martyres. No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada, trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia em que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca. N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joanna, entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de realisar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze annos. As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.a D. Barbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um homem obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o aceitára para sahir da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.a Gonçalves. O marido esse adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de joias e chamava-lhe a sua duqueza. Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera tepidamente envolvido em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle; passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em que passava debaixo das janellas, puxando os punhos, o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle comia ao jantar. Amaro emmagrecia e todas as noites chorava. Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava: —Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo quinze annos é para o seminario. Não tenho obrigação de carregar comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios! E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento. Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava ser padre. Desde que sahira das rezas perpetuas de Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que se falla baixo com as mulheres,—vivendo entre ellas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,—e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um annel de rubi no dedo minimo; monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de madeira. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia, viajára, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bella voz: Mulatinha da Bahia, Nascida no Capujá... Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou ás portas dos cafés, leu os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a reparar muito nas mulheres—e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escóla, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janellinha n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo negro da noite fórmas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas viellas, de saias engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo: —Então tu não estudas, mariola? E d'ahi a pouco, sobre o Tito-Livio, cabeceando de somno, sentindo-se desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o diccionario. Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia casar. Já as convivencias da escóla tinham introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello. Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silencio regulamentado, o toque das sinetas—deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou. Começaram a tratal-o por tu, a admittil-o, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás conversas em que se contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam com saudade das existencias livres que tinham deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados; os que vinham das pequenas villas lamentavam as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes—o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro. Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma diligencia costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrellas! E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d'algum missionario da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades dos jantares de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões quentes que chiam no prato! os sarrabulhos cheirosos! Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas! Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando como uma ovelha indolente na regra do seminario. Decorava com regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes—chegou a ter boas notas. Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com beatitude e maceravam os joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo, empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de Louvores a Maria; e cumpriam com delicia as regras mais miudas—até subir só um degrau de cada vez, como recommenda S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só lhe offerecia as humilhações d'uma prisão, com os tedios d'uma escóla. Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas que se accumulam no frou-frou das sêdas sobre o tapete do altar-mór, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o tlim-tlim d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres. Amaro não desejava nada: —Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente. No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario era o «tempo das galés», sahia muito perturbado d'aquellas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa, o desejo da Mulher. Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada sobre a esphera, com o olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca... Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama d'agua benta; mas não se atrevia a revelar estes delirios, no confessionario, ao domingo. Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado, comparal-o á serpente e, com palavras unctuosas e gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa mellíflua dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião... —E como disse o nosso padre S. Jeronymo,—e assoava-se estrondosamente—Caminho de iniquidades, iniquitas via! Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era esse, pois, que através de toda a theologia ora era collocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extatica, dando-lhe por acclamação o profundo reino dos céos,—ora vai fugindo diante d'ella como do Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam, desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfallecia no desejo de os quebrar. E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia: luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios molles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros—quantos encantos do peccado! Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silencio da alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos in-folios vinha-lhe um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto: rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do pateo, as comidas monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal, fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa. Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario, esta carta do snr. padre Liset: «Meu querido filho e novo collega.—Agora que está ordenado, entendo em minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios, pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marqueza—para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna—está inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabelecimento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n.º 53. Se toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu querido filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão, na Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade n'este nosso santo ministerio quando sabemos comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os refrigerios que dá—o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo collega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as suas virtudes, supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo.» Liset. «P. S.—O appellido do marido de sua irmã é Trigoso.» Liset. Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve alli desde outubro até ao fim das neves. Feirão é uma parochia pobre de pastores e n'aquella época quasi deshabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram nos districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas congruas. Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão; ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira. Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.º 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro. -Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança! Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão. —Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça... Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marqueza d'Alegros, a snr.a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e um e duas vezes ministro do reino. E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da snr.a condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta um coupé esperava. —A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado á hombreira do pateo, de cigarro na boca. N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos claros. —A senhora condessa já me não conhece..., disse Amaro com o chapéo na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro. —O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle é! Ora não ha! Está um homem! Quem diria! Amaro sorria-se. —Eu podia lá esperar! continuou ella admirada. E está agora em Lisboa? Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da parochia... —De maneira que vim requerer, senhora condessa. Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara, e Amaro sentia vir d'ella um perfume de pó d'arroz e uma frescura de cambraias. —Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha por cá.—E com o dedo sobre o canto da boca:—Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor é d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa.—E rindo com os seus largos dentes frescos:—Parece que o estou a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa! —Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro. —Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem. Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, n'um aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes d'ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias. Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona susurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia crochet, com a luneta encavallada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama. Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e immovel: a todos os cantos se apregoava monotonamente agua fresca! Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam; em redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas. Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido ha de fallar! E via-se já parocho n'uma bonita villa, n'uma casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas. Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminario lhe causava a continencia, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle gostava de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente. No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa. —Não está, disse-lhe um criado da cavallariça. Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado á parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu guardasol pendente do dedo minimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta, o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho n'uma larga sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da sala tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou: —Não sei se incommódo... Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde. —Sou Amaro... —Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher fallou-me. Tem a bondade... E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças brancas muito curtas: —É a pessoa de quem lhe fallei.—Voltou-se para Amaro:—É o senhor ministro. Amaro curvou-se, servilmente. —O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu... —Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado, com o guardasol na mão. —Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,—já não ha d'isso!—fel-o padre. Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o temos parocho... Onde, senhor padre Amaro? —Feirão, excellentissimo senhor. —Feirão!?... disse o ministro estranhando o nome. —Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita. —Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem distracções, com um clima horrivel... —Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor, arriscou Amaro timidamente. —Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.—E mascava o seu charuto. —É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e activos devem estar nas parochias difficeis, nas cidades... É claro! Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um velho, um gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé. —É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessario o estimulo... —Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos governos. O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d'objecção. —Não acha? perguntou-lhe o conde. —Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos na cidade são-nos d'um grande serviço nas crises eleitoraes. D'um grande serviço! —Pois sim. Mas... —Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar. Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada mais. O conde acudiu: —Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitoraes. —Perdão... queria interromper o outro. O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade d'um vasto entendimento: —A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio... —Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelliculas mascadas de charuto. —Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos imbroglios... Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é d'um christão. —Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas... —Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e desacredita a politica. —Mas são ou não as maiorias um principio sagrado? gritava rubro o das suiças, accentuando o adjectivo. —São um principio respeitavel. —Upa! upa, excellentissimo senhor! upa! O padre Amaro escutava, immovel. —Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou:—Entre. É o senhor padre Amaro, Joanna! Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de casimira clara. Nos vãos das janellas, entre as cortinas de pregas largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com contracções aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os joelhos aberto

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