OS REIS Que secreto mobil determina as evoluções da humanidade atravez dos tempos? Que mysteriosa lei regula os destinos das sociedades no discorrer dos seculos? Eis o grande problema que ha duzentos annos preoccupa o espirito humano. É a Providencia: diz Bossuet. As nações teem uma natureza commum; a humanidade é obra de si mesma: sustenta Giambattista Vico. É a influencia do clima: propõe Montesquieu. É a fatalidade cega: proclama Voltaire. É Sua Magestade o Acaso: teima Frederico II. É a situação geographica: aventa, por sua vez, Herder, o philosopho allemão. E todavia o problema ainda não está resolvido, a grande duvida permanece não{10} obstante os incontestaveis progressos da philosophia cada vez mais pejada de systemas... Os acontecimentos succedem-se n'uma variedade caprichosa, que parece intencionalmente destinada a desorientar os philosophos da humanidade e da historia. Hontem os reis eram personalidades sagradas, representavam na terra o poder divino. D'esta alliança do céo com o throno nasceu a corôa encimada pela cruz. O montante real estava ao serviço da religião; dizimava, como um vendaval de morte, os exercitos dos que não tinham a mesma crença religiosa. Beijava-se a mão dos reis como ainda hoje se beija a fimbria do vestido de uma santa. Elles eram recebidos, por toda a parte, debaixo do pallio, como uma reliquia. Os que os viam, ajoelhavam, como se faz para orar. Hoje... Hoje os reis, no mesmo dia em que sobem ao throno, sonham com a via dolorosa do exilio. Sobre os almadraques do aposento real estão os preparativos indispensaveis para a jornada do desterro: o bordão do peregrino, e o chapeu do romeiro. No meio dos saraus da côrte ou nas horas silenciosas da meditação, elles ouvem, como um rumor sinistro, como uma voz presaga, o echo da revolução que se aproxima, como uma onda enorme, ameaçadora.{11} Olhando para seus filhos, estremecem de horror, porque se lembram de que talvez um dia aquellas mimosas creanças terão de sentar-se á mesa do sapateiro Simão. Muitas vezes, contemplando o perfil melancolico da mulher que com elles comparte os cuidados da realesa, julgarão talvez que ella está já sob a pressão de uma loucura saudosa, como a viuva de Maximiliano. Um dia, d'entre o povo que outr'ora os abençoava, ergue-se um braço regicida, o de Hœdel ou de Nobiling, de Moucosi ou Passavante. Até a vida dos reis principia a ser disputada nos clubs secretos, como se fosse de uma fera. As arvores das alamedas publicas sacodem ao vento umas folhas crestadas e crivadas, como na Avenida das tillias; passou por ellas o fogo que devia fulminar o rei. Transformação completa
OS REIS Que secreto mobil determina as evoluções da humanidade atravez dos tempos? Que mysteriosa lei regula os destinos das sociedades no discorrer dos seculos? Eis o grande problema que ha duzentos annos preoccupa o espirito humano. É a Providencia: diz Bossuet. As nações teem uma natureza commum; a humanidade é obra de si mesma: sustenta Giambattista Vico. É a influencia do clima: propõe Montesquieu. É a fatalidade cega: proclama Voltaire. É Sua Magestade o Acaso: teima Frederico II. É a situação geographica: aventa, por sua vez, Herder, o philosopho allemão. E todavia o problema ainda não está resolvido, a grande duvida permanece não{10} obstante os incontestaveis progressos da philosophia cada vez mais pejada de systemas... Os acontecimentos succedem-se n'uma variedade caprichosa, que parece intencionalmente destinada a desorientar os philosophos da humanidade e da historia. Hontem os reis eram personalidades sagradas, representavam na terra o poder divino. D'esta alliança do céo com o throno nasceu a corôa encimada pela cruz. O montante real estava ao serviço da religião; dizimava, como um vendaval de morte, os exercitos dos que não tinham a mesma crença religiosa. Beijava-se a mão dos reis como ainda hoje se beija a fimbria do vestido de uma santa. Elles eram recebidos, por toda a parte, debaixo do pallio, como uma reliquia. Os que os viam, ajoelhavam, como se faz para orar. Hoje... Hoje os reis, no mesmo dia em que sobem ao throno, sonham com a via dolorosa do exilio. Sobre os almadraques do aposento real estão os preparativos indispensaveis para a jornada do desterro: o bordão do peregrino, e o chapeu do romeiro. No meio dos saraus da côrte ou nas horas silenciosas da meditação, elles ouvem, como um rumor sinistro, como uma voz presaga, o echo da revolução que se aproxima, como uma onda enorme, ameaçadora.{11} Olhando para seus filhos, estremecem de horror, porque se lembram de que talvez um dia aquellas mimosas creanças terão de sentar-se á mesa do sapateiro Simão. Muitas vezes, contemplando o perfil melancolico da mulher que com elles comparte os cuidados da realesa, julgarão talvez que ella está já sob a pressão de uma loucura saudosa, como a viuva de Maximiliano. Um dia, d'entre o povo que outr'ora os abençoava, ergue-se um braço regicida, o de Hœdel ou de Nobiling, de Moucosi ou Passavante. Até a vida dos reis principia a ser disputada nos clubs secretos, como se fosse de uma fera. As arvores das alamedas publicas sacodem ao vento umas folhas crestadas e crivadas, como na Avenida das tillias; passou por ellas o fogo que devia fulminar o rei. Transformação completa