MORRER POR CAPRICHO. I. Os meus amigos, de certo, não sabem o que é caçar coelhos na neve? Não admira. Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do Marão. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra. A primeira impressão que recebem é a do assombro. Leguas em roda, nem na terra nem no céo, se descobre uma crista de rochedo, a frança d'uma arvore, a dobra d'uma nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um horisonte a outro horisonte. E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre. Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o buzio de pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos. Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis para longe da casa d'onde presenceaes, com o coração confrangido, esta scena. É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da serra, e serão capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde naturalmente tiritaes de frio, sentados ao pé do tóro de carvalho. Faço-vos esta recommendação porque sois uns homens afeminados, que nunca sahistes dos salões, dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflammadas, antes que o lobo vos désse o cordial abraço da fome, já vós tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo, em justa defeza! Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chãos, tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar na serra um passeio d'algumas horas. O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que só com muita pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo de neve, onde nem as orelhas de fóra dissessem ao passageiro que um moço, a todos os respeitos excellente, fôra alli absorvido por um sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos economia que o Guichard. Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento nutritivo ás nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande obsequio. O terceiro percalço, affecto á caça do coelho na neve, aconteceu-me a mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844. É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte. II. Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os á serra, porque o sol refrangia-se em scintillas na neve, que parecia desfazer-se em laminas de prata. Fui muito contente da consideração que se me dava, como caçador, porque, em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que tambem é verdade, deve-se á pessima polvora das nossas fabricas. Em compensação, matei muito melro e tordo nas serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos caçadores famosos de certo não fizeram. Eu fui um grande homem antes de escrever folhetins! Deus perdôe a quem me torceu a vocação! Eu podia, a estas horas, ser um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos sociaes. Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu és um d'elles, permitte-me dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que eu hei-de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se não és galgo, sensato amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar direitos de mercê. Agora, vai entrar a historia direitinha até ao fim
MORRER POR CAPRICHO. I. Os meus amigos, de certo, não sabem o que é caçar coelhos na neve? Não admira. Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do Marão. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra. A primeira impressão que recebem é a do assombro. Leguas em roda, nem na terra nem no céo, se descobre uma crista de rochedo, a frança d'uma arvore, a dobra d'uma nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um horisonte a outro horisonte. E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre. Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o buzio de pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos. Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis para longe da casa d'onde presenceaes, com o coração confrangido, esta scena. É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da serra, e serão capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde naturalmente tiritaes de frio, sentados ao pé do tóro de carvalho. Faço-vos esta recommendação porque sois uns homens afeminados, que nunca sahistes dos salões, dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflammadas, antes que o lobo vos désse o cordial abraço da fome, já vós tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo, em justa defeza! Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chãos, tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar na serra um passeio d'algumas horas. O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que só com muita pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo de neve, onde nem as orelhas de fóra dissessem ao passageiro que um moço, a todos os respeitos excellente, fôra alli absorvido por um sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos economia que o Guichard. Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento nutritivo ás nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande obsequio. O terceiro percalço, affecto á caça do coelho na neve, aconteceu-me a mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844. É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte. II. Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os á serra, porque o sol refrangia-se em scintillas na neve, que parecia desfazer-se em laminas de prata. Fui muito contente da consideração que se me dava, como caçador, porque, em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que tambem é verdade, deve-se á pessima polvora das nossas fabricas. Em compensação, matei muito melro e tordo nas serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos caçadores famosos de certo não fizeram. Eu fui um grande homem antes de escrever folhetins! Deus perdôe a quem me torceu a vocação! Eu podia, a estas horas, ser um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos sociaes. Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu és um d'elles, permitte-me dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que eu hei-de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se não és galgo, sensato amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar direitos de mercê. Agora, vai entrar a historia direitinha até ao fim